sábado, 4 de outubro de 2008

Só a literatura nos oferece um fio de sentido.

Como um apaixonado pela literatura e, obviamente, como professor, sempre busco maneiras de ganhar novos adeptos à essa fascinante manifestação artística do homem.
Vou reproduzir aqui um artigo do professor José Castello que mexeu muito comigo. Espero que traga inquietações a outros tantos por aí. Boa leitura!!!


A METAFÍSICA DA LÍNGUA

Guimarães Rosa considerava a língua não um instrumento, ou um modo de expressão, mas um "elemento metafísico". Em uma entrevista antiga, ele diz: "Eu utilizo cada palavra como se ela acabasse de nascer". Rosa foi um pensador obsessivo que, em vez de escrever sobre os outros, preferia fazer a crítica contínua e feroz de si. Preferia, a se consagrar, estar sempre a renascer. Talvez por isso, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, ao se tornar "imortal", tenha se apressado a morrer. A imortalidade o matou.
Esse trato impiedoso das palavras, de que Rosa não abdicava, define o crítico. E aqui não penso nos "críticos literários" oficiais. Penso mais na crítica como um elemento interno da literatura, e não como um olhar externo que sobre ela se derrama. Essa posição de parteiro de si (que Rosa dizia ser "metafísica") pode ser adotada mesmo pelos críticos praticantes, como acontece com o americano Harold Bloom, de quem leio "Anjos Caídos" (Objetiva, tradução de Antonio Nogueira Machado, com impressionantes ilustrações de Liberati).
Neste ensaio literário sobre livros e demônios, Bloom se comporta não como o capitão Ahab, de "Moby Dick", que caça furioso sua baleia, mas como o melancólico Gepeto, de "Pinóquio", que prefere entrar na barriga do monstro. Penetro, eu também, nas idéias de Bloom sobre os anjos caídos e sua relação fatal com a realidade. E sou assombrado - isto é, engolido pela sombra - de um escritor que tenho relido cada vez com mais arrebatamento: Machado de Assis. O que Bloom faz em “Anjos Caídos” – livro em que os anjos, em vez de voar, rastejam na lama do real – Machado faz, por exemplo, nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Nada de elevação, ou, ao contrário, de profundidade. A queda nãos se dá nem para baixo, nem para o alto, mas para dentro.
Os anjos caídos interessam a Bloom justamente porque trazem as vísceras expostas. Eles são metades anjos, metade homens, espécies de centauros, que nunca se decidem a respeito da própria identidade. Quando pensamos em anjos caídos, lembramos logo de Satã. Acompanhemos Bloom. A palavra hebraica “satã” significa “obstrutor”. Atirando-se na garganta das associações, o paciente Bloom recorda, em seguida, que a palavra grega para obstrução, ou obstáculo, é “skandalon”. Palavra que, por sua vez, deságua não apenas (em português) em “escândalo”, mas também (em inglês) em “slander”, isto é, “difamação”. Em resumo: Bloom nos mostra que há um inferno de palavras, e não só um anjo traiçoeiro, a arder sob o nome de Satã.
Hoje podemos simplificar e pensar em Satã como o Mal, o grande adversário do Bem. É o que faz, por exemplo, o presidente Bush, quando vê encarnado em certas nações. Um escritor como Gustave Flaubert, contudo, já nos mostrou que o anjo do Mal – que ele preferia chamar de Monstro – se esconde dentro do próprio homem. Quem é sua Emma Bovary, senão uma mulher de alma duplicada? Assim é o real: uma zona de paradoxos. É Bloom quem nos recorda, ainda, que a obsessão moderna por anjos elevados, expressa em tantos best-sellers de ocasião, “é uma máscara para a fuga do princípi0 de realidade”. A existência, ele diz, é a queda no mundo. O dicionário define a existência como um “modo de ser”. Seguindo os passos de Bloom, podemos vê-la, agora como “um modo de cair”.
Queda na qual, diz ele ainda, só a leitura nos salva. “Anjos caídos, como enfatizam Shakespeare e Milton, nunca devem parar de ler”, diz. No mundo rasteiro de hoje, contudo, a leitura densa e persistente está em desprestígio. O prestígio está na moda, no brilho, nas certezas. Numa palavra: na imobilidade. Bloom nos alerta, porém, que, ao desistir de ler, nos condenamos (como Gepeto) à barriga do monstro.
Só a leitura nos conecta com a zona opaca e fervente em que angelical e humano se misturam. Só a literatura, por não dever nada a ninguém e não temer a dúvida, consegue perfurar a casca do real. O que caracteriza o humano, Bloom nos leva a ver, é o dilema. Hamlet, nesse aspecto, é o protótipo do anjo caído, inquieto entre ser e não ser, sem jamais chegar a uma decisão. Sobre o desfiladeiro da existência humana, ele estende um longo tapete de perguntas.
Talvez por isso, Bloom recorda, anjos e demônios habitem mais a literatura que a teologia. Na voragem e desamparo da queda, só a literatura nos oferece, hoje, um fio de sentido. Só as palavras, por suportarem o assédio de verdades divergentes e de respostas paradoxais, sustentam um homem que há não dá conta de si.
Volto às “Memórias póstumas”, de Machado, leio e releio, e esse deslizar é a dança da queda iminente. Preciso, então, permanecer em alerta. Leitores devem estar sempre prontos para a luta, ou não conseguirão ler. Aqui me vem uma idéia de Brás Cubas, que lhe surge durante uma caminhada pelas ruas do Engenho Velho. “O essencial é a luta”, ele diz. Destino (de heróis) que carregamos desde Adão.
Para Bloom, a imagem mais assombrosa do anjo caído não está em Satã, mas em Adão. “Mesmo como uma idéia da imaginação, os anjos só têm importância se nós tivermos importância, e nós somos (ou fomos) Adão”, ele argumenta. Bloom se interessa por Adão (que pode ser Brás Cubas) porque o vê em estado contínuo de queda – isto é, de movimento. No capítulo CIX das “Memórias póstumas”, Brás Cubas compara o espírito humano a uma peteca, que sobe e desce, sobe e desce, e que só nos interessa porque não consegue parar. Largada sobre uma raquete, ou a um canto da areia, uma peteca não é nada.
Ler o mundo exige, porém, imensa paciência. É Bloom quem recorda, ainda, uma idéia de Franz Kafka, segundo a qual o único pecado autêntico é a impaciência. A impaciência, ele diz, é uma “obsessão visual”. Queremos ver a Coisa, fixá-la em uma imagem, capturá-la, na esperança tola de, enfim, sossegar. Acontece que o sossego (Rosa experimentou isso) é a morte. Bloom nos lembra, ainda, que os impacientes não suportam ler. A leitura exige perseverança, exige resignação, pois nos deixa diante do que jamais se mostra.

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